“ERRO 403”: A nova peça da Companhia de Teatro de Sintra (sobre a repressão de manifestações na Bielorrússia)
A mais recente peça da Companhia de Teatro de Sintra — Chão de Oliva, “ERRO 403”, da autoria de Nicolai Khalezin, encontra-se em cena até ao dia 28 de abril, na Casa de Teatro de Sintra, retratando um período de manifestações na Bielorrússia, em 2020, após as eleições fraudulentas, que reelegeram Lukashenko, e a repressão posterior.
Susana C. Gaspar afirmou, em entrevista, que “habituamo-nos à polarização, a ver tudo a duas cores, a estarmos em lados diferentes da ‘barricada’ e temos poucas oportunidades para refletir sobre os ‘porquês’“.
Com um olhar atento sobre a atualidade, “ERRO 403” proporciona uma reflexão sobre regimes opressivos e os conflitos geopolíticos na Bielorússia. O espetáculo desabrocha de que vontade? Quais foram as motivações?
“ERRO 403” integra-se no ciclo definido pelo Chão de Oliva para 2024: “Geografia da Resistência”. Estamos no ano de celebração dos 50 anos do 25 de abril de 1974, mas quisemos abordar esta celebração pela perspetiva da resistência. Do que significou resistir, mas, sobretudo, do que significa resistir ainda hoje. Precisamos celebrar a Liberdade, mas também estarmos atentos às suas ameaças. O que está a acontecer na Bielorrússia afeta não só o povo bielorrusso, mas também toda a sociedade e política mundiais. A opressão cresce e ganha novos territórios, até ser travada. O fascismo nunca está muito longe. A Bielorrússia não está assim tão longe. É esse o principal motivo por que nos propusemos trabalhar este texto, da autoria de Nicolai Khalezin, do Belarus Free Theatre.
A partir do trágico assassinato de Alexander Taraikovsky, em agosto de 2020, durante um protesto pacífico após as eleições fraudulentas no país, o foco narrativo explora a visão do atirador, da sua família e dos colegas militares. Que camadas o compõem?
São várias as camadas, como as de uma cebola. Vão sendo reveladas durante os 60 minutos do espetáculo. Primeiro, a perspetiva da visão familiar – do medo de mudança e também a necessidade de estabilidade. Começamos por ver aquele atirador como um homem de família, mero executante, com um trabalho difícil. A esposa tem pena dele. Por outro lado, percebemos as camadas destes regimes de opressão. Alguém deu a ordem e alguém executou a ordem. A culpa é necessariamente de ambos. Porém, existe a dúvida se o vão incriminar só a ele. Como se tivesse sido um erro – disparou sobre alguém por lapso seu. A perspetiva do comandante, por exemplo, é muito interessante, porque expõe a natureza destes regimes e a importância das unidades militares e de intervenção para a manutenção do regime. Não interessa ao Presidente incriminar um dos seus. Interessa-lhe ter os militares do lado dele. Apesar destas camadas sociais e políticas, há depois uma grande profundidade na consciência deste atirador. Acompanhamo-lo nos seus pensamentos, medos, desesperos. E é isso que nos abana enquanto espetadores.
O universo interior — conflitos internos, dilemas e questionamentos — é acompanhado ao longo da peça. Que exigências são colocadas? Porquê criarmos empatia pelo “vilão”?
Como dizia, é um texto que nos coloca a acompanhar a mente / consciência deste atirador. A interpretação dos atores é extraordinária. O André Pardal, em particular, ao interpretar este “atirador” enche-o de vulnerabilidade e humanidade. Claro que o vemos ser uma besta, agressivo, assustador, mas não é só feito disso. É um “vilão” vítima de outros vilões. Percebemos as várias dimensões do evento. Vemo-lo como um peão de um jogo cruel.
Habituamo-nos à polarização, a ver tudo a duas cores, a estarmos em lados diferentes da “barricada” e temos poucas oportunidades para refletir sobre os “porquês”. As causas da violência, da repressão. O que leva alguém a executar este tipo de ordens. Porquê disparar sobre um manifestante pacífico? Porquê continuar a deter pessoas inocentes, persegui-las, torturá-las? Nicolai Khalezin, o autor do texto, foi também preso na Bielorrússia e que teve de fugir do país devido à constante perseguição, mas dizia que é sempre mais fácil perceber a vítima, quem se coloca do lado da liberdade. Mas ele precisou perguntar-se: porque é que um polícia luta? Porque disparou sobre uma pessoa que protestava pacificamente? Ele procura respostas para encontrar algum sentido e esperança para o povo bielorrusso.
Tendo historial em Direitos Humanos e Teatro Documental, que importância possui a obra no impulso à mudança e na reflexão sobre os confrontos armados que vivenciamos hoje?
Em primeiro lugar, vemos o impacto em cada espetador/a. Muitos não sabem da situação na Bielorrússia e são surpreendidos pelo universo deste texto. Esse é um dos principais impulsos. É também com a missão de informar, sensibilizar. Levar as pessoas a saberem mais, para que queiram também fazer alguma coisa. Já tivemos bielorrussos connosco que nos agradeceram muito por este trabalho, pela nossa representação deste texto e porque se têm sentido “esquecidos” pela comunidade internacional. O que se vive na Bielorrussia tem paralelo com o que se vive noutros países e leva-nos a refletir profundamente sobre esta ideia de necessidade de “resistência” pela liberdade, que se enquadra no nosso ciclo. Pensámos neste polícia bielorrusso, como pensámos em situações similares de outros polícias, de outras nacionalidades.
Até chegar, finalmente, à versão final do projeto, como foi o processo? Qual é a parte mais bonita e a mais incitante?
No início do processo tivemos o guião em três línguas – russo (original), inglês (enviado pelo Belarus Free Theatre) e português (com tradução de Sónia Pinho). O guião em português foi traduzido da versão em inglês e, por vezes, ficávamos com dúvidas se algo teria ficado “perdido” na tradução (do russo para o inglês). A verdade é que, conforme nos explicaram, a língua russa tem uma “língua paralela” no que toca a um discurso asneirento e ofensivo. As asneiras em russo raramente têm paralelo em português. Num dos ensaios, tivemos connosco um casal bielorrusso que acompanhava o ensaio com o guião em russo e dizia “isto até para nós é forte demais” e achavam que nem sempre as personagens que estávamos a criar representavam essa brutalidade. Foi, assim, um jogo de equilíbrios, entre o conhecido e o desconhecido e o processo de decisão sobre o que queríamos comunicar enquanto equipa.
A primeira etapa foi dedicada à dramaturgia e a uma pesquisa-em-ação para percebermos mais sobre este país e a sua história. Foi necessário entendermos todas as referências do texto, pessoas mencionadas, locais. Estudámos mapas, vimos documentários. Quando nos lançámos à cena, fizemo-lo num espaço vazio. Sabia que o queria despojado, para melhor reforçar o trabalho com os atores a partir da tensão vivida no texto. No guião original, a voz interior do atirador deveria ser interpretada por um ator.
Na nossa interpretação, tive de decidir sobre um desdobramento da voz. Os orçamentos das nossas produções são limitados, precisamos fazer escolhas. Por vezes, essa “obrigação” de sermos criativos – de pensarmos como resolver as dificuldades financeiras – também nos ajudam a descobrir outras camadas. Neste espetáculo, a voz interior é interpretada por diferentes atrizes/atores que se podem (ou não) colar às restantes personagens que interpretam. E isso enriqueceu muito o texto! Estou muito contente com o trabalho desenvolvido por toda a equipa criativa deste espetáculo, com destaque para o maravilhoso elenco. A parte mais bonita é olharmos para o processo como uma viagem e termos orgulho no resultado. Sobretudo com o acolhimento que temos tido por parte do público.