A história de coragem e superação de Joana Andrade, a primeira mulher portuguesa a surfar as grandes ondas do Canhão da Nazaré, inspirou a história documental de “Big vs Small”, que estreou no canal Odisseia no passado domingo. “Big vs Small” é um documentário enérgico e inspiracional que acompanha Joana Andrade, campeã de surf de ondas gigantes, conhecida como “Tiny Fighter”.
A Mais Superior foi conhecer a história e as motivações por detrás da mulher que é a prova viva que muito mais do que parecer, é realmente preciso ser para conseguir vencer.
Como é que surgiu a oportunidade de seres protagonista do documentário ‘Big vs Small’?
Surgiu com um convite da realizadora Minna Dufton, que quando esteve em Portugal, ficou maravilhada com este espaço e com este lugar e queria muito ir à Nazaré para ver aquelas ondas e o mar. Nessa altura, alguém lhe disse que havia uma rapariga que surfava as ondas gigantes da Nazaré e que tinha 1,50m de altura. (risos) Posteriormente entrou em contacto comigo e começámos a falar. Ao fim de várias conversas, ela diz-me: ‘Sabes que mais? Quero fazer um filme acerca da tua vida, destas ondas e da forma como tu as enfrentas!’ Eu fiquei um bocadinho perplexa: ‘Quem sou eu para agora estar a fazer um filme?’ Mas, como pessoa que gosta de desafios pensei: ‘Bora lá!’ E aceitei este novo desafio na minha vida!
Sentiste aquele nervoso miudinho de quem está a atirar-se para uma coisa nova?
Sente-se sempre quando estamos no desconhecido! A minha profissão é estar no mar e não é estar atrás das câmaras. Foi desafiador. É sempre difícil partilhar certas coisas muito pessoais para o mundo, mas penso e espero que seja uma inspiração e poderá ajudar a quem assistir.
Estás ansiosa pelo feedback das pessoas?
Fico sempre um bocado nervosa (risos)! O documentário já foi visto noutros países do mundo e tem tido um feedback muito positivo. Agora aqui em Portugal, a estreia deixa-me mais nervosa, porque é o meu país, é onde eu vivo, onde conheço toda a gente, por isso, fico mais nervosa com a opinião das pessoas.
O documentário começa com a frase “Corajosa não é a que teme, mas a que conquista o seu medo.” Como é que se enfrenta o medo diariamente?
Ao longo da minha vida comecei a perceber que o medo e o pânico são coisas boas de se sentir, porque permite manter-nos vivos e evitar o que nos pode matar. É uma mais valia muito grande, perceber como se pode ultrapassar o medo, porque todos nós os temos. Se não sairmos da zona de conforto, se não ultrapassarmos o que tememos, não evoluímos. Comecei a perceber, por essa razão, que o medo é bom de se sentir e como é que pode ser trabalhado por mim e em mim.
No ‘Big vs Small’ podemos ver-te durante vários minutos dentro de uma piscina de gelo, completamente a tremer e acabas por dizer que há uma altura em que a dor é tanta que se transforma em prazer. Essa sensação foi uma conquista por superares a dor e o medo?
Eu vejo a relação entre dor e o prazer, de forma muito parecida como a adrenalina e o medo. Percebi que quando a dor é tanta, há um momento em que desaparece e vamos ganhando uma dormência… como se o corpo tivesse de se entregar à dor e ultrapassá-la para conseguir tirar de lá algo positivo, e isso é espetacular, é uma conquista! Isto são coisas que se experiencia e se vive quando se ultrapassa o medo, e se arrisca a conhecer o que está para lá do que se receia.
Podemos ver vários planos teus a olhar para o mar, a contemplá-lo. O que é que pensas nesses momentos?
Ui, tanta coisa…depende das alturas! Quando vou fazer surf, normalmente, sinto que tenho de entrar para o mar para me purificar e surfar aquelas ondas, mas sinto sempre medo. Especialmente, quando se enfrentam as ondas gigantes, há medo sempre. Vou para o mar com muita humildade e com a consciência de que aquilo me pode matar.
Há sempre a consciência do perigo?
Sempre, todas as vezes e isso permite-me sobreviver.
Afirmas “As ondas ajudaram-me a enfrentar este medo do mar.”. Como é que aquilo que se teme é também a solução para se deixar de ter medo?
Ao longo do tempo, vim guardando medos, fechando portas em mim, deixei de acreditar em certas coisas e fechei-me um pouco. Arriscar, sair da zona de conforto, ultrapassar certos obstáculos, permitiu-me ganhar mais força interior e exterior.
Revelas situações e episódios mais duros e a forma como os ultrapassaste. Mas, o surf esteve sempre lá. Este desporto tem representado coisas diferentes ao longo da tua vida?
O surf é uma terapia, não o vejo como desporto, mas como um santuário. É onde eu me sinto bem, onde consigo estar no aqui e no agora, e isto é uma coisa muito difícil de conseguir hoje em dia, nestes tempos acelerados que vivemos. Se fico três ou quatro dias sem ir para dentro de água, o meu corpo ressente-se, sinto-o a ‘ressacar’ do mar. Preciso daquilo. Ao fim ao cabo, nós somos maioritariamente constituídos por água, portanto estar no mar é uma forma de me reencontrar. Este desporto que é desafiar novas ondas, é desafiar o tempo que todos os dias é diferente, ajuda muito a desbloquear certos medos e inseguranças que temos cá dentro.
O medo é um dos temas centrais do documentário, mas também o papel da mulher no surf é também abordado. Este é um desporto maioritariamente de homens. Achas que este é um paradigma com tendência a ser alterado?
Quando me iniciei neste desporto, não vi isso dessa forma. Sempre gostei de puxar por mim e pelos meus limites, nasci mais rebelde (risos). Há quem diga que eu sou inconsciente. Mas, eu acho que isto está mesmo em mim, é instinto. As mulheres, regra geral, ainda estão apenas a querer fazê-lo, mas com receio de arriscar. Tendencialmente irá alterar-se este paradigma.
Esta tendência é motivada pelo sistema ou são as mulheres que ainda não se desafiam nas ondas?
O sistema já foi muito pouco recetivo às mulheres. Há alguns anos, o prize money era menos um zero para as mulheres do que para os homens. Contudo, há cerca de um ano ou dois conseguiu-se a igualdade, e ainda bem, porque quando vamos para as ondas temos tanto medo e tanto mérito como qualquer homem. Atualmente, acho que já começa a haver mais mulheres, mas ainda não é um número comparável. No mundo das ondas grandes, o número de mulheres é ainda mais reduzido, mas este desporto ainda é recente, começou principalmente desde que o Garrett McNamara surfou aquela onda no Canhão da Nazaré, só agora é que começam a haver equipamentos mais adequados para que consigamos arriscar mais, portanto é uma questão de tempo até haver mais mulheres a surfar grandes ondas.
Já ganhaste várias distinções e prémios no surf. O que gostavas ainda de alcançar?
Eu quero sempre alcançar mais e fazer coisas novas, fazer mais e melhor. Neste momento tenho uma escola de surf na Ericeira, tenho um projeto ligado à solidariedade em São Tomé e Príncipe onde ajudo as crianças, principalmente mulheres, a entrar no mundo do surf, porque é muito mais difícil para elas, numa cultura onde, regra geral, as mulheres são apenas responsáveis pela casa e não têm uma vida própria. Eu quando cheguei lá, tentei ajudá-las a mudar a forma como pensam e encaram o desporto, a pensarem que o desporto e o surf não são só para os homens! Cada vez mais acho que é importante demonstrar que o surf é mais do que um desporto, é uma meditação, uma ajuda. Pessoalmente ajuda-me a conectar-me comigo mesma e a ser uma pessoa melhor e mais focada nas minhas prioridades e objetivos. Agora através da minha escola de surf, trabalho com pessoas de todo o mundo que vêm para cá, muitas delas só para enfrentarem o medo de estar dentro de água, porque a realidade é que muitas pessoas que fazem aulas de surf, não querem saber surfar, querem enfrentar o medo da água, do oceano, das ondas… se calhar esta é a missão que eu tenho nesta Terra.
Qual é a mensagem que gostavas que este documentário transmitisse?
Somos todos diferentes e todos iguais. Não devemos ter medo de ser quem somos e temos de ultrapassar quem fomos no passado e seguir em frente, ultrapassando os nossos medos.
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