Ela chegou para ficar, e os videojogos são apenas uma das muitas aplicações que lhe podes dar. Mas esta é também uma tecnologia que, pelas suas características, deve ser usada de forma moderada. Falámos com uma investigadora e com uma ortoptista e refletimos sobre os riscos e as potencialidades da nova febre tecnológica que é a realidade virtual.
O que é
Trata-se de um interface que te transporta para um mundo totalmente virtual, com um nível de imersão nunca antes visto. Esse mundo pode ser uma de muitas coisas: um jogo construído em 3D, um filme a 360 graus, um programa com o qual interages ou até uma imagem fixa, mas tão real que parece mesmo que lá estás.
Para tornar este ambiente o mais real possível, usa-se normalmente um par de óculos. E há de vários tipos, desde os Cardboard da Google a exemplares tecnologicamente mais avançados como os Oculus Rift ou os HTC Vive. E claro, os recém-chegados PlayStation VR, dedicados ao gaming em realidade virtual.
Moderação precisa-se
Com a chegada da realidade virtual à sala de estar de milhões de pessoas, levantaram-se as primeiras preocupações sobre os riscos para a saúde humana. Possíveis sintomas como a miopia e a síndrome do olho seco foram avançados por um médico britânico, que acredita que a massificação da realidade virtual pode levar ao aumento dos problemas de visão.
Por outro lado, há quem tenha sentido enjoos a experimentar a realidade virtual em, por exemplo, um jogo de carros.
Daí que os próprios fabricantes destes óculos recomendem que estes sejam usadas apenas por pessoas com pelo menos 13 anos, devido ao risco de limitação do campo visual, sobretudo na fase de crescimento em que se encontram.
Tudo isto acontece porque o que a realidade virtual faz é levar o teu cérebro a acreditar que está num sítio diferente. As simulações, como é o caso dos videojogos, dão indicações diferentes aos teus olhos e ao teu sentido de equilíbrio nos ouvidos. Daí que existam recomendações expressas para os seus utilizadores fazerem pausas frequentes na exposição a esta tecnologia. Se pensares bem, não é nada que não aconteça já com a tua televisão, smartphone, PC ou qualquer outro equipamento; aqui, o cuidado deve ser redobrado.
Ludmilla Casimiro é ortoptista e defende as “pausas regulares para evitar queixas de fadiga ocular”, bem como “pestanejar várias vezes para favorecer a lubrificação do olho e atenuar os sintomas de olho seco”. E se usares regularmente óculos com graduação, esta profissional recomenda que apliques essa correção “também nos óculos de realidade virtual”. Por enquanto isso ainda é impossível, mas há já marcas a desenvolver estudos para criar dispositivos que incorporem a correção ótica.
Um mundo de possibilidades
A realidade virtual está longe de se resumir a um par de óculos para videojogos. Existem até tecnologias paralelas, como a realidade aumentada, que funciona quase de forma oposta à realidade virtual – acrescenta elementos virtuais e informação à realidade real e palpável em que estás inserido num determinado momento. E tu já tiveste oportunidade de a experimentar com o Pokémon Go, que adiciona informação – neste caso, pokémons – ao ambiente em que te encontras.
Mas a realidade virtual tem mesmo muito mais por explorar. Na verdade, são muitas as aplicações que pode ter, em áreas tão distintas como a reabilitação de pessoas doentes, as finalidades educativas ou o turismo, e que comprovam que esta tecnologia tem, de facto, um enorme potencial.
Em Portugal, há quem trabalhe há vários anos com a realidade virtual para ajudar a reabilitar pacientes. É o caso da Ana Lúcia Faria, formada em Psicologia Clínica e da Saúde, especializada na área da neuropsicologia e que está agora a fazer um doutoramento na área da Psicologia da Reabilitação. Ela é um dos profissionais que compõe o projeto NeuroRehab Lab, do Instituto de Tecnologias Interativas da Universidade da Madeira (M-ITI), onde a sua função é criar conteúdos para a realidade virtual com o objetivo de reabilitar pacientes, e validá-las clinicamente.
Uma cidade virtual para doentes
Imagina um jogo como o The Sims ou o Second Life, onde a cidade é construída de raiz a pensar em pacientes que têm dificuldade em movimentar-se, ou que sofrem de problemas de memória. É isso que fazem os investigadores do projeto NeuroRehab Lab, com a criação de um ambiente onde os doentes podem desempenhar várias atividades do quotidiano, conforme nos explicou a Ana Lúcia: “Os pacientes podem ir ao banco ou à farmácia, ao supermercado ou aos correios, por exemplo. Existem também, dentro do jogo, ferramentas destinadas a estimular a atividade cerebral; por exemplo, um quiosque com jornais e revistas tem a função de os ajudar a desenvolver a sua memória, com recurso às notícias e às imagens que visualizam”.
Outra das circunstâncias em que a realidade virtual é particularmente valiosa é, de acordo com a Ana Lúcia, “quando o paciente deixa de conseguir ver de um dos lados do seu campo visual. Exercícios como o atravessar de uma estrada, que se torna bastante perigoso nesta situação, pode ser treinado através da realidade virtual”.
A grande mais-valia da realidade virtual para o apoio à reabilitação está, precisamente, na sua aproximação ao real. A investigadora com quem falámos refere que “as técnicas convencionais sofrem muitas vezes do problema de não terem grande correspondência com as atividades do dia a dia dos pacientes”, e que a realidade virtual “permite que tudo seja o mais aproximado possível à realidade, para que depois de um treino em realidade virtual haja uma transferência da aprendizagem para a vida da pessoa”.
E foi precisamente para colmatar as lacunas da reabilitação convencional que este grupo de investigadores se dedicou a este projeto. Em causa está a falta de ligação entre os pacientes e os exercícios que lhes são dados – muitas vezes não os fazem por serem demasiado repetitivos. Com a realidade virtual, explica-nos a Ana Lúcia, passa a poder existir “um contexto lúdico, que tem como finalidade o tratamento mas que incorpora elementos de gaming como a atribuição de pontos, que atribuem um impacto imediato à performance dos pacientes, por exemplo. Para quem precisa de sentir que está a melhorar a sua condição clínica, é vital”, reforça.
Os óculos VR: potencialidades e riscos
Para além de utilizar a realidade virtual enquanto simulação por computador, o NeuroRehab Lab também está a desenvolver projetos com óculos de realidade virtual – no caso, o Oculus Rift, o Google Cardboard (que exige apenas o próprio smartphone) e o Samsung Gear VR. Segundo a Ana Lúcia Faria, estes óculos representam realmente “algo revolucionário, porque permitem uma maior imersão no ambiente virtual e dão uma perspetiva mais realista, sendo inclusivamente utilizados para casos clínicos em doenças como o autismo, a fobia social ou os traumas de guerra”.
Esta tecnologia pode representar vários tipos de benefícios para o paciente, em sua casa. De acordo com esta especialista, “todos os exercícios que são feitos através da interação com um computador podem ser transpostos para os óculos de realidade virtual, beneficiando da tal maior imersividade”. No NeuroRehab Lab são desenvolvidas algumas tarefas especificamente para estes óculos, como “uma atividade de remo para vítimas de AVC, para que possam exercitar os membros superiores, ou tarefas de captação de atenção”, conclui a Ana Lúcia.
O objetivo passa por, no futuro, transpôr toda a gama de exercícios para uma utilização com os óculos de realidade virtual.
Apesar disso, esta especialista alerta para os potenciais problemas do uso destes óculos entre os doentes, uma vez que “os próprios fabricantes alertam para uma lista de efeitos secundários, como os enjoos e as náuseas, as alterações do sono e as dores de cabeça”.
No NeuroRehab Lab, os especialistas recorrem ainda à tecnologia de realidade virtual aumentada, que funciona “num ambiente escuro e fechado, onde são instaladas câmaras de deteção de movimento, e onde é projetado no chão e nas paredes um ambiente virtual, com o qual os pacientes interagem”, conclui a Ana Lúcia.
Usada com moderação, a realidade virtual é uma ferramenta muito poderosa, sobretudo em casos clínicos. Imagina uma pessoa paraplégica a poder explorar livremente um mundo virtual, ou uma pessoa que tenha tido um AVC e que tenha perdido a autonomia do seu braço direito, poder explorar o que está ao seu redor com esse mesmo braço, em ambiente de realidade virtual… Tudo graças a sistemas de interface que ligam o cérebro da pessoa ao computador e que transformam a imaginação dela em estímulos, permitindo assim desempenhar a ação no contexto virtual.
E se nada disto se aplicar à tua pessoa, porque não ficar simplesmente de olho nas aplicações que já estão a ser desenvolvidas para a exploração de lugares turísticos através do Oculus Rift, com acesso à história dos locais de forma virtual?
Dentro de pouco tempo, tudo isto estará ao alcance de todos nós.
[Reportagem: Tiago Belim]