Domingos, Francisco, Manuel, Salvador e Tomás. Estes cinco amigos dispensam apresentações. O novo álbum, A Invenção do Dia Claro, tem raiz brasileira mas sangue bem português – e claro, vem com a sonoridade tão particular que nos envolve, trespassa e assina no final: Capitão Fausto.
A Mais Superior esteve no estúdio da banda em Alvalade, onde conversou com Domingos, o baixista.
COMEÇANDO PELO PRINCÍPIO: AS VOSSAS RAÍZES. TODOS VOCÊS SÃO LISBOETAS?
Sim! Somos todos de Lisboa. Exceto a minha família, que vem do Peso da Régua. Estudámos na mesma escola e crescemos juntos – à exceção do Tomás, que conhecemos no décimo ano. Somos amigos desde os 12 ou 13 anos e fomos da mesma turma até ao final do secundário.
Na escola onde andávamos havia salas de música muito bem equipadas, com imensos instrumentos. No primeiro dia de aulas, cada um escolhia o que queria tocar. Eu fui logo para o baixo. No final do ano, costumava organizar-se um concerto para os pais e para o resto dos alunos – onde éramos nós a atuar. Uns meses antes do espetáculo, criámos uma banda para tocar umas quantas músicas depois da participação da turma toda. Posso dizer que foi o nosso primeiro concerto, tínhamos 13 ou 14 anos. Eu tocava baixo, o Manel e o Francisco guitarra e o Salvador bateria. Tocávamos covers de Metallica, de Nirvana… Tínhamos algumas músicas originais – mas ainda muito “infantis”, de certa forma!
QUE NOME DERAM À VOSSA BANDA?
Já passámos por alguns nomes. Um deles era Phobia. Também tivemos outra banda chamada IC19… E aí até ganhámos um concurso de bandas. Com o Tomás, tornámo-nos Capitão Fausto.
E O MISTÉRIO QUE ENVOLVE O NOME, PODES DESMISTIFICÁLO?
Já nem me lembro. Inventámos tantas histórias que já nem faço ideia. Fazíamos isso no início, quando nos perguntavam a origem do nosso nome. Já me perdi no meio de tantas versões. Na verdade é só um nome, não é muito importante… Mas vou contar-te aquilo de que me consigo recordar: Estávamos a preparar-nos para os exames nacionais e havia um livro chamado Capitão Bruno na casa onde costumávamos estudar. O Fausto acho que foi porque tocámos no casamento de um tio do Tomás, o José Wallenstein. Houve uma novela na qual ele fazia de um personagem chamado Fausto Martins de Melo. Pode ter sido por isso… Mas não tenho a certeza!
ESTE NOVO ÁLBUM, A INVENÇÃO DO DIA CLARO, FOI GRAVADO NO BRASIL MAS SURGE COM UM NOME MUITO LIGADO A PORTUGAL. DE ONDE SURGEM, AFINAL, AS MAIORES INFLUÊNCIAS PARA A CRIAÇÃO DO PRODUTO FINAL?
Surgem à medida que vão aparecendo. Não decidimos que íamos fazê-lo de determinada forma, foram felizes coincidências. Foi música após música que fomos descobrindo a dimensão e a cor que o disco ia ter. Soubemos, desde cedo, que tínhamos a possibilidade de ir gravar ao Brasil – a convite da Redbull. Aí, deixámos uma maior abertura a estímulos e referências diferentes. Quisemos encaixar esses elementos na música, até porque seria uma pena estarmos a ir a um país culturalmente tão rico e não “pedirmos emprestada” uma coisinha ou outra. Quisemos tocar com músicos de lá e sentimos que as músicas ficaram com um toque distinto, uma cor que nos agradou bastante. Relativamente ao título, no fim de todas as letras estarem escritas o Tomás andava à procura de um que fizesse sentido… Encontrou um paralelismo no livro do Almada Negreiros e gostou dessa ideia. Já conhecia o livro e tinha, inclusivamente, lido alguns poemas dele no festival Paredes de Coura. Para ele, esse nome fez sentido e conjugou com aquilo que estava a escrever. Foi uma feliz coincidência e acabou por dotar o álbum dessa mistura interessante. Depois de escolhermos o título fomos falar com um designer chamado Vitor Silva. É um senhor com mais de oitenta anos, reformado há imenso tempo. Tratou do design de várias marcas e jornais durante os anos 60 e 70. Fomos desafiá-lo para nos fazer uma capa e o resultado final foi uma estética um pouco modernista – que agora já é retro.
E QUANTO AO NÚMERO DE FAIXAS, FOI UMA ESCOLHA ESTRATÉGICA?
Não. Até eram para ser nove músicas, mas houve uma delas que não conseguimos acabar. Já no álbum anterior nos aconteceu isto. A capacidade de síntese é muito importante para nós, mas é algo que não tínhamos muito antigamente. Cada um de nós queria dar o máximo, fazer tudo aquilo que conseguisse, com a melhor intenção possível e num pedaço de tempo limitado. Talvez devido à nossa idade e experiência, mudámos essa perspetiva. E gostamos de sentir que temos controlo, que não é necessário fazermos algo muito longo para dizer o que temos a dizer. É por isso que gosto de discos curtos.
A ORDEM DAS FAIXAS FOI MUITO PLANEADA OU É MAIS ALEATÓRIA?
Foi planeada. Existe uma ordem lógica na história contada nas letras. Ao contrário dos outros discos, neste demos mais atenção a essa parte. A ordem costuma ser intuitiva. Ouvimos de várias formas e percebemos como soa melhor. Chega a ser uma sensação um pouco inconsciente, mas quem tem uma visão romântica dos discos – e nós temos! -, embora saiba que as músicas se possam ouvir sozinhas, organiza-as para que tenham uma ordem agradável. É por isso que não lançamos simplesmente singles. É giro que haja uma coerência entre as melodias, tonalidades e andamentos. O disco torna-se mais fluido. Quando o Tomás começou a escrever, já sabia sobre o que queria falar e as diferentes fases daquilo que queria escrever. Por exemplo, todos concordámos que a Certeza seria a primeira música.
“A SENSAÇÃO COM QUE FICO DEPOIS DE ACABAR UMA FAIXA É DE QUE ALI ESTÁ ALGO QUE NÃO PODERIA SER FEITO POR OUTRAS PESSOAS, QUE É NOSSO E ESPECIAL”
HÁ ALGUMA MÚSICA QUE TENHA DADO ESPECIAL DOR DE CABEÇA?
As que deram muito pouca dor de cabeça foram a Sempre Bem (que ficou praticamente logo feita, assim que pegámos nela) e a Final (que também foi extremamente fácil, e é a única do disco onde estamos só os cinco a tocar, sem coros ou outros instrumentos). Como somos muito perfecionistas, todas elas deram o seu trabalho… Mas dor de cabeça deu-nos a Outro Lado, que tinha uma secção de mais um minuto que não conseguimos resolver – mas que todos adorávamos. Esse minuto e tal acabou por ficar fora do disco, mas acredito que um dia o iremos mostrar ao público. A Faço as Vontades e a Boa Memória deram imenso trabalho! Foi uma alegria fazê-las. Passaram por diversas fases, onde a essência se manteve – mas foram-se modificando e acabaram por ser das últimas a estar prontas. O “esqueleto” principal das músicas veio quase pronto do Brasil, mas ainda gravámos bastantes instrumentais já em Alvalade, no nosso estúdio.
SE OUVIRMOS UM POUCO DAS VOSSAS MÚSICAS, SABEMOS DE IMEDIATO QUE SÃO VOSSAS – MESMO QUE NÃO CONHEÇAMOS, ESPECIFICAMENTE, AQUELA. TÊM ESTA CONSCIÊNCIA? É PROPOSITADO?
O que acontece é que o processo de criação é um pouco egoísta. Não queremos saber das consequências comerciais ou de futuro daquilo que estamos a fazer. Isso ajuda. Experimentamos sons, tentamos perceber até onde podemos levar uma ideia… E fazêmo-lo sempre com as razões mais puras. Não pensamos “Bora tentar fazer uma música parecida com isto.” Com as ferramentas que temos, damos o melhor que conseguimos. Fomos aperfeiçoando técnicas, ao longo destes anos, que acabam por dar um caráter especial ao nosso trabalho. Talvez seja por estarmos um pouco fechados sobre nós próprios que esse cunho tão particular se reflete nas nossas músicas. A sensação com que fico depois de acabar uma faixa é de que ali está algo que não poderia ser feito por outras pessoas, que é nosso e especial. Se o público vai ou não gostar, já não sei! Mas, pelo menos, estamos confortáveis o suficiente para as defender. O que está no nosso controlo é sentirmo-nos orgulhosos com aquilo que fizemos.
HÁ MUITOS QUE DIZEM QUE OS VOSSOS POEMAS REFLETEM UM SENTIMENTO PARTILHADO DE UMA GERAÇÃO. FAZEM-NO DE FORMA CONSCIENTE?
É completamente inconsciente. Já nos disseram várias vezes que os Capitão Fausto são a voz de uma geração. Não me identifico nessa declaração. Não somos pessoas revolucionárias ou com uma forte mensagem política a passar. Somos como todos à nossa volta, marcados pelos nossos dilemas e particularidades. Pertencemos a uma geração e é natural que alguns impulsos que o Tomás tenha ao escrever transbordem para temas com as quais as pessoas se consigam identificar. Dilemas pessoais e sociais, desgostos amorosos, dificuldade em tomar decisões quanto ao futuro, incertezas… Essas são questões que acabam por ser mais inerentes a uma determinada geração. No entanto, são problemas milenares. Claro que tem um toque de época: é natural que nós, fazendo parte dela, estejamos mais alinhados com a nossa geração… Não gosto de assumir que alguém é a voz de alguém. Cada um tem a sua. O que me deixa mais feliz é que a música que fazemos não seja apenas os três minutos em que ela existe. Há pessoas que me dizem que já estudaram para exames ou que já ultrapassaram situações difíceis enquanto nos ouviam. O que me interessa é o momento em que a música deixa de ser algo apenas material e com um espaço limitado de tempo. Aquilo que nos demorou quase dois anos a fazer pode ser usado por alguém para se sentir melhor, e isso é o que nos deixa mais felizes.
A MÚSICA PORTUGUESA ESTÁ A PASSAR UM BOM MOMENTO?
Sim. Há muitos bons indicadores disso. Temos programas específicos e rádios muito interessadas em música portuguesa, cada vez encontramos mais diversidade em termos de sons, géneros e referências. Já exportamos muito além do fado. Portugal tem um mercado relativamente pequeno e faltam alguns circuitos criados a pensar em artistas que ainda estão a começar. É bom que se crie visibilidade, que se dê algum dinamismo e oportunidades para que os novos talentos se façam ouvir. Isto é algo que se faz muito no Brasil.
SE TIVESSES DE VOS APRESENTAR A ALGUÉM QUE NÃO VOS CONHECE, COMO COMPLETAVAS A FRASE “NÓS SOMOS OS CAPITÃO FAUSTO E…”?
E fazemos a música de que gostamos! Ela podia responder “Boa, ok”, ou podia dizer “Então vamos lá ouvir isso!”.
[Replicado da revista]
[Foto: cedidas pelos entrevistados]