É um disco de originais que fala de origens. O novo trabalho do Miguel Araújo é um álbum de memórias de infância que volta a privilegiar as sonoridades acústicas e a alma e a magia que a música, no olhar deste autor, deve ter. Conversámos com ele numa viagem entre Lisboa e o Porto.
Há poucas semanas tocaste no Enterro da Gata. Ouvindo o teu estilo de música e vendo a tua postura em palco, não serias à partida o primeiro nome a vir-nos à cabeça para subir ao palco de uma festa académica. É uma experiência diferente para ti?
Eu faço cada vez menos festas académicas, porque existe cada vez menos espaço e contexto para música deste género. A minha música não é a mais adequada para o contexto que é e para os horários que são praticados… não é algo que eu goste muito de fazer e acho que não faz muito sentido.
Por acaso esta última que fiz até foi fixe e correu bem, mas geralmente não é assim…
No entanto, há muita gente nesta faixa etária que gosta da tua música…
Sim é verdade, mas isso eu vejo nos meus concertos, não nas semanas académicas. Até vejo malta mais nova a aparecer, o que é muito fixe, mas é tudo uma questão de contexto.
Falando do Giesta… Para quem conhece o teu percurso e a tua música, este álbum segue a linha do que tens feito até aqui? Não quiseste reinventar o que fazes nem o que as pessoas conhecem de ti?
Acho que sim. Eu não ando muito à procura de um estilo de música, não é tanto esse o objetivo. Preocupo-me mais com as canções em si, e não tanto se o som é diferente ou não… Não estou à procura de um estilo inovador, estou à procura de novas canções, e de cada vez que tenho uma canção nova sinto que já estou a inovar.
De resto, a minha tendência é sempre de adotar um som mais acústico, com instrumentos acústicos.
Ouvi-te falar na forma meio “tosca” como fazes música, na própria gravação sem o cuidado que têm outras produções… Ao mesmo tempo percebe-se a simplicidade da tua música, a tua atenção aos detalhes e o teu método na escrita. Achas que se tivesses outro tipo de produção, conseguirias ter ainda mais sucesso? Ou a tua piada reside na naturalidade com que fazes as coisas?
A música de que mais gosto não se revê muito em produções assim mais “higiénicas” ou em música mais comprimida. Na música atual, quando um cantor grita o volume da voz é o mesmo devido à dinâmica – o volume de todo o som é comprimido. Isso faz parte da produção, para se ouvir tudo limpinho na rádio e para não haver altos e baixos. Não sinto que esteja a ser desleixado na minha produção, o que acontece é que se ouvires Bob Dylan ou Prince, gravações mais antigas, há ali coisas que para mim são as coisas que dão alma e magia à música, e é disso que eu ando à procura. É nesse sentido que digo que não tenho os cuidados que uma produção atual requer. A música de hoje é som a entrar para dentro do computador, onde não existe ar. E eu ando à procura desse ar.
Achas que as pessoas te valorizam também por isso? Acabas por ser uma lufada de ar fresco na grande maioria de coisas que são feitas atualmente?
Não sei muito bem. Mas quem gosta de música tocada, orgânica, não é geralmente muito fã de música eletrónica, e vice-versa. A música que hoje em dia domina os tops é mais eletrónica, música feita em computador e tocada por programas eletrónicos. Eu gosto mais de música tocada acusticamente, mas isso não significa que seja o único a fazê-la. Não sou nenhum contra-corrente. Ao mesmo tempo, isto não é dizer que não existe música eletrónica autêntica. O Agir tem uma propensão musical eletrónica e isso também o torna autêntico, da mesma forma que eu toco um instrumento que aprendi a tocar, e que isso também faz de mim um artista mais autêntico.
Atualmente fala-se muito do turismo e do impacto que tem no país e nas grandes cidades, que acabam por ser de certa forma um pouco “violentadas” pelo crescimento. Da Giesta, onde cresceste, o que é que sobra atualmente? Também se sentiu esse impacto lá ou mantém-se tudo exatamente como era quando lá estavas?
Entre 2010 e 2012 vivi no Bairro Alto, e no outro dia fui lá e estava tudo completamente diferente. Na Giesta, onde eu nasci, fui lá no outro dia e está tudo exatamente igual. As lojas são as mesmas, os supermercados são os mesmos, o cheiro do supermercado Ferreira é o mesmo… Está tudo igualzinho. O turismo não chegou a essa zona da Maia. Mas não acho que isso seja uma violência, acho que o progresso faz parte da natureza humana, e se as cidades não mudassem, ainda vivíamos todos nas cavernas. Acho que é saudável haver turismo.
Isso significa que, se um dia destes, visses a zona onde cresceste ser transformada por causa do turismo, isso seria algo pacífico para ti? Um sinal de progresso?
As cidades estão em constante mudança e seria impossível não ser assim. A zona onde eu nasci tinha um nome qualquer no tempo dos visigodos, outro qualquer no tempo dos romanos, depois passou a chamar-se assim… É a vida.
Em relação à Giesta, apesar de estar tudo na mesma já se perderam as pessoas e as casas do tempo em que lá viveste. Este disco é a tua forma de registar e de guardar as memórias que tens?
É um bocadinho. Foram acontecendo várias coisas na minha vida… Por exemplo, no ano passado a casa dos meus avós paternos foi vendida, e o último dos meus tios que morava nessa zona morreu. Dei por mim a refletir sobre isso e começaram a sair-me músicas nesse sentido, mas nunca tive assim um objetivo de grande alcance para um disco. As músicas foram saíndo a falar desses tempos e do lugar onde eu nasci, para me desligar desse lugar… Nós arquivamos memórias da infância e por vezes temos de nos desligar.
Estará isso relacionado também com o momento da vida em que te encontras? Disseste que estás a chegar à meia idade e que é tempo de balanços…
Sim, sei lá… É normal. A esperança média de vida de um português será de setenta e tal anos e eu estou exatamente a meio (risos…). Tem a ver com esse refletir do “desligar” natural que muitas vezes acontece com as pessoas, sobre o sítio onde nasceram e cresceram.
Qual é o balanço que fazes da tua carreira?
Não sei. A minha carreira a solo é muito curtinha… Começou em 2012. Ainda é muito cedo para fazer balanços, mas as coisas atingiram uma dimensão que eu não esperava. Fico muito contente mas também não sei se dá para fazer grandes projeções… ainda é muito cedo. Eu comecei nesta coisa de cantar e de trabalhar comigo próprio aos 34 anos – até lá fui guitarrista de uma banda. A partir daqui não sei como vai ser, contudo acho que a minha música vai melhorar com o estúdio que montei em casa. Agora vou poder começar a trabalhar diariamente naquela que é a minha profissão.
Até 2012, nunca te tinhas imaginado a cantar nem tinhas tido formação… Eras, como já disseste, guitarrista de uma banda. Vês-te a “voltar atrás” e a participar numa banda nesse registo?
Não penso nisso. Muitas vezes não canto nem toco porque escrevo para outros cantores. E nesse caso, nem participo na banda deles. Eu não digo que adoro cantar, mas digo que não desgosto de cantar (risos…) Aquilo que eu gosto mesmo de fazer é de escrever músicas e é a isso que dedico a maior parte do meu tempo. Claro que me preocupo em ser melhor cantor e melhor guitarrista do que sou, mas isso vai melhorando com a prática e com os concertos.
E de todas as letras que já compuseste até hoje, qual é a que mais gostas?
Há duas: a Anda Comigo Ver os Aviões e outra chamada Valsa Redonda. São aquelas onde a letra combina bem com a música e onde a melodia é mais original. São aquelas em que consegui fazer algo que não corresponde aos padrões melódicos normais. Não tentei ser original… soa a natural.
O que é que a tua família diz sobre o Giesta?
A minha mãe e irmã gostaram, o meu pai não sei se já ouviu… Ele não liga muito a música em geral. Ainda não tive grande feedback. Cada um vê a realidade à sua maneira e esta é a minha visão da minha família e da minha história em casa da minha avó. É a minha perspetiva de quando eu era criança.
[Entrevista: Tiago Belim]
[Fotos: Paulo Bico]