Um cocktail musical que transforma o “azeite” de outros em “azeite virgem extra”. A música de Mike El Nite questiona o que está instituído e desafia o preconceito, ele que não é “beto” nem “mitra”, e que acredita ter assinalado um marco no hip hop tuga. Ele é o Justiceiro e só quer fazer o que ainda não foi feito.
2016 é o ano do Justiceiro. Como é que tem sido a experiência?
Desde que comecei este projeto que cada ano que passa tem superado o anterior. 2016 é o pico da minha carreira, porque lancei o meu primeiro longa-duração, e porque dei aquele que foi provavelmente o melhor concerto de sempre, no Super Bock Super Rock, no dia de Kendrick Lamar, onde senti uma energia incrível por parte do público.
O Mike El Nite é uma junção do hip hop com a eletrónica. Hoje em dia, é difícil aos músicos restringirem-se a um único estilo?
Talvez porque tudo está muito acessível, talvez também porque são as próprias pessoas que estão a tornar-se mais complexas naquilo que procuram musicalmente… Acho ainda que os géneros e a segmentação dos mercados, na música e a todos os níveis, estão a diluir-se muito e o que acontece é uma personalização de cada um. Eu oiço hip hop mas também oiço muitas outras coisas, e as minhas influências são aquilo que me foi chegando ao longo da vida. O que é bom nisso é que, no final, acabo por ver o resultado de todas elas neste cocktail musical.
“Não me importo que digam que eu não faço parte da cultura hip hop, eu quero fazer muito mais do que isso. Para mim, o mais importante é fazer coisas que ainda não foram feitas.”
De onde é que vem o Mike El Nite? És mais um anónimo das redes sociais que apareceu com um single de sucesso, ou já estavas rodeado das pessoas certas?
Eu cresci com um pai artista (o músico Quinzinho de Portugal), por isso sempre consegui ver como é que as coisas funcionavam. Mas isso não significou propriamente um caminho mais fácil para mim, e preferi afirmar-me por mim próprio. Tive sorte, houve uma conjuntura favorável que permitiu que tivesse um single com sucesso e um vídeo bem feito, e tudo aconteceu numa altura em que decidi fazer algo da minha vida e entrar para a faculdade. Isso desencadeou tudo o resto.
Acho que assinalei um marco na cultura hip hop em Portugal, e agora quero continuar a desafiar-me e a conhecer cada vez melhor o mundo em que estou inserido, em todas as áreas, porque hoje estou em cima do palco e amanhã posso estar a fazer outra coisa qualquer. Há muito para fazer na música, e acho até que deviam existir mais cursos superiores nesta área.
Falas de quê, concretamente?
Na verdade, sempre fui muito crítico das pessoas e das instituições, por achar que muitas vezes as coisas não evoluem para que se mantenham determinados privilégios.
Acredito que todo o sistema de ensino está também a precisar de uma viragem. O que é que as pessoas querem estudar na faculdade, e que disciplinas é que efetivamente acabam por ter? Acho que deveria existir maior personalização, e em função do que cada escola tem para oferecer, os alunos deveriam ter mais liberdade de escolha.
E porque dizes que não te sentes nem beto nem mitra? Achas que estares no meio é aquilo que te torna único?
Acho que alguém que não vive em nenhum dos pólos acaba por ter mais conhecimento, e quanto mais conheceres melhor. Isso cria um sentimento de não-pertença em ambientes distintos, e depois é engraçado quando conheces outras pessoas que se sentem assim, porque elas sabem exatamente do que estás a falar. Isso deita os preconceitos por terra e torna as pessoas mais ricas.
É também isso que queres dizer quando afirmas querer “acabar com a lenga-lenga de sempre”?
Sim. No caso do hip hop, estamos a falar de uma subcultura antipreconceito, que perpetua o preconceito em relação à mudança. Há ali um tronco comum do qual não é possível desviares-te um bocadinho, porque aí já não fazes parte da cultura. Ao início revoltei-me contra isso, mas hoje em dia já me sinto muito mais descontraído, por achar que não preciso de fazer parte de cultura A ou B. A partir do momento em que as pessoas começam a fechar paredes a uma coisa, ela torna-se limitada. Não me importo que digam que eu não faço parte da cultura hip hop, eu quero fazer muito mais do que isso. Para mim, o mais importante é fazer coisas que ainda não foram feitas.
“Há por aí muita gente a fazer azeite, eu vou pegar nesse azeite e fazer dele azeite virgem extra.”
E é fácil teres essa liberdade?
Hoje em dia, há liberdade para fazer o que se quiser. Para mim, o segredo é perceber como se entrega uma mensagem que não é aquela que as pessoas estão à espera de ouvir, mas fazendo com que elas queiram ouvir. Foi engraçado quando lancei o Mambo nº 1 em 2013, porque tive reações completamente distintas: Entre “era mesmo isto que o hip hop português estava a precisar” e “este gajo está a destruir o hip hop”, houve de tudo. Por isso, havia quem estivesse a pedir isto, e houve quem ficasse chocado, e por isso, existe liberdade mas também existe resistência à mudança, e para mim o segredo é conseguir contornar isso. Como? Com trabalho de alta qualidade.
Consideras que vais mais longe do que os outros, com as tuas letras?
Não diria que vou mais longe do que os outros, talvez tenha mais a ver com as referências que uso, que não são muito óbvias na cultura rap, como os jogos de computador ou o mundo da televisão, e no fundo tudo é usado como trocadilho e como ironia.
Considero que há pessoas mais dotadas tecnicamente do que eu na lírica, e eu procuro usar as minhas valências e também evoluir.
Essas referências surgem-te naturalmente, ou tentas incorporá-las no teu processo criativo?
Eu gosto de pegar numa coisa que à partida as pessoas vão ver como “azeitice”, injetar-lhe o meu contributo e dar-lhe um twist. Em Santa Maria, peguei numa música de eurodance dos anos 90 de uma banda que muitos eruditos dizem ser uma “chungaria” do caraças, e transformei-a num tema de amor negro, obsessivo e autodestrutivo.
Há por aí muita gente a fazer azeite, eu vou pegar nesse azeite e fazer dele azeite virgem extra.
[Entrevista: Tiago Belim]
[Fotos: Match Attack]