Não há cá meios diagnósticos – ou se tem, ou não se tem. E ele tem: desde criança que manipula o humor, brinca com ele, usa-o da maneira mais parcial que pode. Seja na rádio, na Netflix, nos palcos ou no seu podcast Ar Livre, Salvador Martinha consegue conjugar a sua Cabeça Ausente com uma capacidade singular de observar o Mundo e convertê-lo em Comédia.
Inicialmente, o teu sonho era estar deste lado: ser jornalista. Como aconteceu a mudança? O que te atraía na área?
Eu queria era aparecer. Há uma série de profissões dentro da paleta daquelas que mais aparecem e ser pivot do noticiário é uma das melhores. Pelo menos uma horinha por dia ninguém te tira! Eu tinha essa ambição, mas foi um sonho muito curto. O que me motivava no jornalismo não era a investigação: era ter visibilidade, ter o poder de aparecer. Mas depois nunca cheguei, sequer, a equacionar ir para esse curso.
No Jornalismo, terias de te esforçar por ser imparcial… Isso não é um pouco incompatível com o humor?
É uma boa análise, porque o que eu gosto mais na comédia é, justamente, de ser parcial. O que sempre foi algo que me irritou foi haver a ideia de termos sempre de ser imparciais nas nossas opiniões. Eu gosto de ser parcial e o humor é parcial, não tem de fazer todo esse esforço quase desumano do jornalismo para informar e não dar a opinião. Eu posso informar e dar a minha opinião! É isso que me atrai no humor.
Como foi a tua experiência no Ensino Superior?
Fui para Marketing e Publicidade. Sempre fui um bocado cábula e a minha gestão era “Como posso continuar com este álibi de ser estudante, fazendo o mínimo possível?”. Marketing e Publicidade enquadrava-se nisso. Tinha um professor na Faculdade que dizia “TIrar um curso é como espremer uma laranja: tudo depende da maneira como o fazes! Se for sem grande esforço, não sai sumo. Se fores mais intenso já é diferente.” Portanto, é possível fazer um curso superior sem saber nada daquilo. Quantas pessoas não são licenciadas e, mesmo assim, não percebem nada da sua especialidade? Milhares. Eu tenho algumas luzes de Marketing, que trouxe comigo para a minha profissão: sei o que é um posicionamento, uma estratégia – mas bastante por alto.
Existe algum ingrediente essencial para “cozinhar” um bom humorista ou têm todos bases diferentes?
Tenho uma teoria. Ser humorista é uma doença! (risos). Eu reconheço quando um outro humorista tem a doença, mas também vejo alguns que são apenas pára-quedistas. É como eu amanhã lembrar-me que quero ter um restaurante e tornar-me um pára-quedista da restauração! Obviamente que não tenho, no meu adn, ser um grande chef ou cozinheiro. Consigo identificar isso, perceber “Esta pessoa é doente como eu”.
Se me pedes um ingrediente-base, escolho essa espécie de desequilíbrio. Como uma lente que está instalada em ti, desde muito novo, e te leva a ver o mundo sempre de um prisma humorístico. Somos como conversores que, em vez de converter euros em dólares, convertem tudo o que vêm em humor. Isto não se pode forçar: já somos humoristas ainda antes de o sermos como profissão.
Como defines o teu humor?
Costumo dizer que não é negro nem caucasiano: faço humor transparente. Hoje em dia, posso dizer isso. Mas levei muito tempo a chegar aqui, nem sempre fiz o humor que queria fazer. Deu-me muito trabalho. É um humor que vem da minha alma, sem segundas intenções e sem agenda.
Quando é que percebeste que tinhas piada? Disseram-te ou chegaste a essa conclusão sozinho?
Apercebi-me desde muito puto. Tinha uns 9 ou 10 anos. Quando és um miúdo, não te dão uma carta de credibilidade. As pessoas riem-se dos putos porque eles se enganam, dizem disparates. E eu comecei, desde muito cedo, a manipular! Tornei-me um pequeno manipulador! Mas no bom sentido, não no sentido de esfregar as mãos e pensar “Vou ficar com a fortuna da minha avó!” (risos). O que fazia era dizer disparates propositadamente, fingir que me tinha enganado – porque sabia que se iam rir.
O Levanta-te e Ri está de regresso. Quando começou, em 2003, foste um dos primeiros a passar por lá. O que mudou desde essa altura – em ti e no panorama do humor em Portugal?
Primeiro, há cinco vezes mais comediantes agora do que na altura – e estão muito mais preparados, mesmo os mais novos. Tinha 19 anos quando fui ao programa, fui o mais novo a participar. Não tinha qualquer preparação técnica nem emocional, ter ido foi muito arrojado. Hoje, quem lá vai já tem muito mais preparação. Chegam a ir com uma bagagem de 100 espetáculos. Eu fui com três! Embora esta seja uma expressão muito forte, já começa a haver uma indústria “A Indústria do Humor”. Tens 20 humoristas com tours pelo país. Na altura tinhas um e não havia, sequer, o conceito de tour. O Humor evoluiu muito! Antigamente, tinhas uma geração de humoristas. Agora tens os mais velhos, os da minha idade, os mais novos e os ainda mais novos. Já são quatro gerações.
Achas que essa participação te abriu algumas portas e te mostrou que aquele era o caminho certo para o teu futuro?
SIm, mal ou bem. Apesar de não ter sido grande espingarda, fica sempre uma associação da cara ao ofício. As pessoas passaram a associar-me ao humor e isso permitiu-me fezer uma série de novos contactos.
Fala-me dos Alcómicos Anónimos.
Esse foi, talvez, o grupo mais importante que tive na minha vida. Começámos em 2005, eu tinha 22 ou 23. Foram três anos durante os quais definimos, entre nós, uma série de ideias que ainda hoje fazemos. Víamos muito as gerações mais velhas, tirávamos ideias. Eu e o Rui Sinel de Cordes discutíamos muitas ideias que ainda hoje pomos em prática! Foram anos muito ricos, durante os quais aprendi muito – principalmente sobre escrita.
Foi a partir desse grupo que cada um de vocês começou a definir o seu estilo próprio de humor?
Foi a partir do fim – e foi, precisamente, o motivo do fim. Quisemos misturar os estilos todos, mas depois houve uma separação natural. Eu continuei a ter um estilo muito “Family Guy” e o Rui foi mais para o seu humor negro. Foi benéfico estarmos juntos, mas também foi benéfico cada um prosseguir para o seu estilo.
Quem era a tua referência no humor, nessa altura?
As referências internacionais eram as clássicas: Monty Python, Seinfeld, Conan O’ Brien… Não vale a pena estar aqui a inventar muito. Não havia internet nem tv cabo, por isso as referências eram limitadas àquilo que chegava cá. Comecei a ver o Conan e o Jay Leno na NBC, na parabólica.
Em Portugal, adorava o Herman e o Ricardo Araújo Pereira! Lembro-me de ter feito o meu primeiro workshop de humor e de o RAP aparecer e fazer stand up. Ele não era conhecido na altura, mas até me deixou nervoso com aquela cena fresca que estava a fazer. Era incrível e diferente de tudo o que havia!
E hoje?
Acompanho tudo, sou muito observador. Não sou daqueles humoristas que diz “Ah, não vi, não vi”. Já vi os espetáculos de quase todos os humoristas portugueses e muitos estrangeiros também. Estamos numa fase em que já há tantos humoristas que começamos a parecer uma praga! Até era giro fazer um filme de terror sobre isto: os humoristas a multiplicarem-se como gremlins e a dominar o mundo! Gostaria que o stand-up não fosse uma maioria, mas agora parece que há um stand-up comedian a cada esquina… Não gostava que se tornasse algo mainstream ou banal.
Como funciona o teu processo criativo? Encontras uma centelha de piada, sentas-te logo e abres o bloco para escrever?
É muito complicado desligar. O que sinto é que posso só estar sentado no sofá a ver televisão e chegar ao final do dia exausto. Pensar Humor é uma maneira de existir. Estou aqui e este senhor entrou na sala de determinada maneira, aquele tem um casaco daquela cor… E já estou a pensar em piadas! Chego a estar cansado de estar com pessoas, porque estou sempre em constante criação.
Tudo o que vejo converto em humor, não tenho folgas.
Então o Humor é como uma Arte?
Não quero ser presunçoso, mas sim. Não falando de mim, mas do Humor. Nunca ninguém diz “O Humor é uma Arte” mas, no fundo, ele está presente em todas: na escultura, na pintura, no cinema… É uma Doença e uma Arte.
Rádio, Netflix, espectáculos ao vivo… Palcos, estúdios… Onde é que te sentes verdadeiramente em casa?
Onde me sinto confortável. Nunca fui de aceitar muitos convites, sempre disse vários “nãos” – talvez tenha dito demasiados. Hoje já consigo perceber que digo sim ou não de acordo com o meu conforto. Não vale a pena meter-me em algo só porque é “muito bom”: cada humorista tem o seu estilo e eu resulto muito melhor quando estou 100% confortável.
Por exemplo, fiz rádio e não me sentia inteiramente confortável. Foi ao ponto de os meus amigos dizerem “Ya, rádio não é para ti.” Mas depois fiz o podcast Ar Livre (que não é rádio, mas funciona nas mesmas bases) e, de repente, metade das minhas plateias nos espetáculos são ouvintes do programa. Lá está, tem a ver com o conforto. Preciso de liberdade para não me sentir constrangido.
Alguma vez sentiste que não podias dizer o que querias?
Em Portugal temos uma censura mais sofisticada: não há um lápis azul nem um senhor que diga “Olhe, desculpe, você não pode dizer isto”. É mais o moralismo das pessoas que leva a uma auto-censura.
Vivemos num país que tanto pode ter sentido de humor como ser muito chato. O Obama entrou numa convenção nuclear de skate? É o maior, muito divertido! O Presidente da República ligou para a Cristina Ferreira? Todos lhe caem em cima, só cronistas revoltados “É um populista, um aproveitador!”...
São estas pequenas coisas. Num país que é assim, tu pensas duas vezes e optas por não dizer isto ou aquilo.
O que mais te chateia no Humor?
A pressão para ter de fazer rir de determinada maneira. Se me dizem “Oh Salvador, conta aí umas piadas!”. Não dá, não consigo. Há humoristas que conseguem! Essa pressão de fazer rir tira-me a pica.
Quase como o engraçado a quem se pede para contar uma anedota no jantar de família?
Exatamente! Há muitos projetos que são “Olha, queres participar neste jantar de família?”. Eu não tenho jeito para isso! Sou aquele diz “Olha, queres cagar na tua família e vamos lá para cima para o sótão, que eu tenho uma rádio pirata?” .
O Cabeça Ausente vai correr o país, de norte a sul. Isso não te cansa?
Ainda no outro dia estava a dizer à minha mulher que era muito mais fácil estar nesta profissão se tivesse uma vida mais desequilibrada…. Eu faço 100 espetáculos, 50 da tour e 50 de preparação. Atuo quarta, quinta, sexta e sábado – e a adrenalina vai subindo, subindo… Até que chega domingo, dia de família! Como é que uma pessoa salta entre ser normal e ser anormal? É um bocado esquizofrénico!
O que tinhas presente na tua cabeça quando preparaste este espetáculo?
O espetáculo é um conjunto daquelas ideias que fui tendo, ao longo dos anos, e sobre as quais pensava sempre “Não, não, isto é muito arrojado de estar agora a dizer…”. É um registo mais arrojado, diferente do que fiz no Coliseu.
Um espetáculo com bolinha vermelha?
Sim, mas não pelas asneiras – que já passámos essa fase. Por uma questão de “Eh lá! Como é que ele foi pensar nisto? Como é que tem coragem para pensar nisto!”.
Tens algum espetáculo, na tua carreira, que tenha sido particularmente marcante para ti?
O Coliseu. Lembro-me de ir com a minha mãe ao Coliseu e nunca prestar atenção aos espetáculos- fossem de circo, de dança. Estava fascinado pelo ambiente, queria subir ao palco, absorver aquilo tudo.
Estabeleci o objetivo de atuar lá aos 35! Achava que era preciso uma certa maturidade. E consegui, bateu tudo certo com o meu sonho. Estive ali sólido, seguro: correu muito bem.Depois disso relaxei muito. Como aqueles treinadores que nunca foram campeões nacionais e estão sempre carrancudos. Depois ganham e relaxam, já se riem…
Se agora morresse, acredita que já ia um bocado feliz. Depois de encher o coliseu e de ser um bom espetáculo, é tudo uma repetição desse sonho – mas noutra escala. É o nosso problema: somos ambiciosos demais.
Preferias nunca mais fazer uma piada ou estar sempre a fazer piadas sobre tudo?
Epá… Na primeira opção ia para o desemprego – e na segunda também, porque ia estar sempre a criar caos! Era uma vida muito triste… Mas era capaz de escolher a primeira, para depois haver quem dissesse “Olha sabes, este é o Salvador, aquele gajo a quem lhe aconteceu uma coisa e nunca mais consegue ter piada!”. Ia tornar-me um mito!
[Fotos: cedidas pelo entrevistado]